Dinho Vasconcelos

"Con tu puedo y con mi quiero / Vamos juntos compañero" Mário Benedetti.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Terra deu, Terra come


Esse é um dos melhores documentários desde "À margem da imagem", de Evaldo Mocazel, e "Prisioneiro da Grade de Ferro", de Paulo Sacramento. Estamos falando do filme documentário Terra deu, Terra come de Rodrigo Siqueira.

Uma imersão no sertão roseano, ou melhor, no sertão que invadiu o Rosa, na figura do mineiro Pedro, último representante dos cantos fúnebres em vissungo, bruxo, feiticeiro e preto velho, contador de estórias...

Pra quem é bom entendedor, meia palavra engana.

Olha a ligação aí: http://terradeuterracome.com.br/

Isso é Leminski

Por falar em tortura...

Há muitos modos de se torturar uma criança.

Pode-se, por exemplo, fazer uma fogueira com todos os seus brinquedos, e obrigá-la a assistir a cena. Esse era o método favorito entre os mongóis, que entendiam de tortura infantil como poucos.

Um outro modo muito eficiente também é chegar, de repente, e dizer para a criança: "Tua mãe morreu". Salvo casos raros, como o do imperador Nero, essa técnica dá resultados lancinantes. Os russos preferem métodos mais sutis. Para torturar uma criança, eles enchem um quarto escuro com as obras completas de Marx, Engels, Lênin e Stalin e deixam a criança lá dentro por 24 horas. Os americanos, mais pragmáticos, preferem levar a criança até um parque de diversões e dizer: "Titio vai comprar pipoca". E nunca mais aparecer. Soube-se de casos em que pais ou responsáveis deixaram seus filhos ouvindo Frank Zappa, a todo volume, por horas a fio, tortura preferida pelos pais contraculturais dos anos 60.

Pais imaginativos gostam de torturar seus filhos contando-lhes histórias em que lobos tentam entrar na casa dos porquinhos, sendo que a criança é um dos porquinhos. Ou histórias onde uma bruxa malvada prende Branca de Neve numa jaula para que ela (a Branca, não a criança) engorde e fique no ponto, para ser assada no churrasco de domingo. Essa tortura ficcional é muito eficaz, porque vai repercutir na vida onírica dos petizes, produzindo, a médio prazo, sonhos angustiantes e pesadelos insuportáveis, dos quais a criança, invariavelmente, acorda gritando - "Mamãe"! É a hora perfeita para dizer: "Volte a dormir, querida; mamãe, o lobisomem comeu". (...)

Mas, de todos os métodos para torturar crianças, nenhum se compara ao método chamado "escola". A escola deve ter sido inventada por um verdadeiro discípulo do marquês de Sade. Basta dizer, para vocês fazerem uma ideia, que, nestes hediondos calabouços, as crianças são obrigadas a memorizar que dois mais dois "é quatro", que "pi" é um número sem fim, que um ao quadrado é um e que todo número multiplicado por zero - mesmo que seja um bilhão -, é zero. E não pára aí.

Uma das torturas mais requintadas usadas nessas tais "escolas" é a chamada análise sintática, nome inocente para disfarçar um dos tormentos mais sofisticados que a doentia mente humana foi capaz de inventar.

Basta dizer que na tal "análise sintática", diante de uma frase, uma criança tem que adivinhar quem é o sujeito, quem é o predicado, quem é o objeto, não necessariamente nessa ordem, é claro. Adivinhar é uma brincadeira divertida. Mas não no caso da "análise sintática". Se você adivinhar errado, reprova, e vai ter que fazer, de novo, aquele ano inteirinho, tentando adivinhar quem é o sujeito, quem é o objeto, quem é o predicado. Depois de reprovar uma, duas, três, quatro vezes, a criança desiste e prefere ser trombadinha, surfista ou cabo eleitoral de Jânio Quadros, qualquer coisa, menos sujeito, predicado ou objeto.

Peguem o tal sujeito inexistente, por exemplo, o sujeito das orações que expressam fenômenos atmosféricos. Chove, quem chove? Ninguém chove. Mas a criança diz: "A chuva chove". Pronto, reprovada. Ninguém chove. Venta. Quem venta? O vento? Errado. Ninguém venta. O vento se venta sozinho.

Que dizer do tal "sujeito oculto"? Claro que o sujeito oculto é sempre o principal suspeito do crime de haver frases no mundo. A não ser assim, por que se ocultaria? Sujeito oculto. "O assassino se escondeu atrás da parede de tijolos", "O espião da KGB usa óculos escuros", "Jack, o estripador, era filho da rainha Vitória", "Mengele está vivo e bem no Paraguai", esses são casos verídicos de sujeitos ocultos. Mas as crianças levam anos para encontrá-los. E, quando os encontram, já estão com cabelos brancos, como Sherlock Holmes.

A invenção da escola, como vocês estão vendo, torna obsoletos todos os antigos métodos de torturar crianças.

Com mais escolas, as crianças sofrerão muito mais, os adultos se divertirão mais e todos teremos, enfim, "aquele Brasil com que todos sonhamos".

(Paulo Leminski, Folha de S.Paulo, 18/09/85)