Dinho Vasconcelos

"Con tu puedo y con mi quiero / Vamos juntos compañero" Mário Benedetti.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Isso é Leminski

Por falar em tortura...

Há muitos modos de se torturar uma criança.

Pode-se, por exemplo, fazer uma fogueira com todos os seus brinquedos, e obrigá-la a assistir a cena. Esse era o método favorito entre os mongóis, que entendiam de tortura infantil como poucos.

Um outro modo muito eficiente também é chegar, de repente, e dizer para a criança: "Tua mãe morreu". Salvo casos raros, como o do imperador Nero, essa técnica dá resultados lancinantes. Os russos preferem métodos mais sutis. Para torturar uma criança, eles enchem um quarto escuro com as obras completas de Marx, Engels, Lênin e Stalin e deixam a criança lá dentro por 24 horas. Os americanos, mais pragmáticos, preferem levar a criança até um parque de diversões e dizer: "Titio vai comprar pipoca". E nunca mais aparecer. Soube-se de casos em que pais ou responsáveis deixaram seus filhos ouvindo Frank Zappa, a todo volume, por horas a fio, tortura preferida pelos pais contraculturais dos anos 60.

Pais imaginativos gostam de torturar seus filhos contando-lhes histórias em que lobos tentam entrar na casa dos porquinhos, sendo que a criança é um dos porquinhos. Ou histórias onde uma bruxa malvada prende Branca de Neve numa jaula para que ela (a Branca, não a criança) engorde e fique no ponto, para ser assada no churrasco de domingo. Essa tortura ficcional é muito eficaz, porque vai repercutir na vida onírica dos petizes, produzindo, a médio prazo, sonhos angustiantes e pesadelos insuportáveis, dos quais a criança, invariavelmente, acorda gritando - "Mamãe"! É a hora perfeita para dizer: "Volte a dormir, querida; mamãe, o lobisomem comeu". (...)

Mas, de todos os métodos para torturar crianças, nenhum se compara ao método chamado "escola". A escola deve ter sido inventada por um verdadeiro discípulo do marquês de Sade. Basta dizer, para vocês fazerem uma ideia, que, nestes hediondos calabouços, as crianças são obrigadas a memorizar que dois mais dois "é quatro", que "pi" é um número sem fim, que um ao quadrado é um e que todo número multiplicado por zero - mesmo que seja um bilhão -, é zero. E não pára aí.

Uma das torturas mais requintadas usadas nessas tais "escolas" é a chamada análise sintática, nome inocente para disfarçar um dos tormentos mais sofisticados que a doentia mente humana foi capaz de inventar.

Basta dizer que na tal "análise sintática", diante de uma frase, uma criança tem que adivinhar quem é o sujeito, quem é o predicado, quem é o objeto, não necessariamente nessa ordem, é claro. Adivinhar é uma brincadeira divertida. Mas não no caso da "análise sintática". Se você adivinhar errado, reprova, e vai ter que fazer, de novo, aquele ano inteirinho, tentando adivinhar quem é o sujeito, quem é o objeto, quem é o predicado. Depois de reprovar uma, duas, três, quatro vezes, a criança desiste e prefere ser trombadinha, surfista ou cabo eleitoral de Jânio Quadros, qualquer coisa, menos sujeito, predicado ou objeto.

Peguem o tal sujeito inexistente, por exemplo, o sujeito das orações que expressam fenômenos atmosféricos. Chove, quem chove? Ninguém chove. Mas a criança diz: "A chuva chove". Pronto, reprovada. Ninguém chove. Venta. Quem venta? O vento? Errado. Ninguém venta. O vento se venta sozinho.

Que dizer do tal "sujeito oculto"? Claro que o sujeito oculto é sempre o principal suspeito do crime de haver frases no mundo. A não ser assim, por que se ocultaria? Sujeito oculto. "O assassino se escondeu atrás da parede de tijolos", "O espião da KGB usa óculos escuros", "Jack, o estripador, era filho da rainha Vitória", "Mengele está vivo e bem no Paraguai", esses são casos verídicos de sujeitos ocultos. Mas as crianças levam anos para encontrá-los. E, quando os encontram, já estão com cabelos brancos, como Sherlock Holmes.

A invenção da escola, como vocês estão vendo, torna obsoletos todos os antigos métodos de torturar crianças.

Com mais escolas, as crianças sofrerão muito mais, os adultos se divertirão mais e todos teremos, enfim, "aquele Brasil com que todos sonhamos".

(Paulo Leminski, Folha de S.Paulo, 18/09/85)